Ainda sinto o cheiro de vó e vô
quando entro nessa casa. Ainda ouço o disco da Xuxa nesse quarto da frente que
agora não é mais quarto. Da para ouvir o
silêncio da modorra das tardes quando traquinamente eu roubava os biscoitos de
um pote de alumínio cinza. O medo da repreensão tornava a aventura mais
excitante. Havia sempre um caldeirão de água a esquentar na chapa de metal de
um fogão a lenha eternamente aceso. O alpendre outrora mais baixo e mais
modesto abrigava os netos em natais mais festivos e risonhos. Com direito a
irmão chorando por presente que pensava ser seu, mas que devia ser entregue ao
seu amigo oculto, o que causava boas risadas em todos. Minha mãe vestindo-se de
papai Noel e nós em nossa inocência tentávamos adivinhar quem era. Era curioso
ver o telhado antigo da casa, telha grossa, das que não se faz mais. Um
emaranhado de “flandes” retorcidos captava agua da chuva, eram as biqueiras.
Esperava-se as primeiras tormentas para lavar o telhado por onde circulavam os
gatos. Os canais aéreos convergiam para o tanque, no meio do alpendre. Em
noites muito quentes dormia-se em cima dele, admirando as estrelas com uma
fenda bem nítida na Via Láctea. Ou assim aquele cenário se apresentava para
mim. Minha avó, mandava pegar agua no tanque num latão com uma corda amarrada
ao meio de uma haste de madeira. Quando não estava tão cheio era preciso ter perícia
para jogar o “balde” com a boca para baixo, para que ele simplesmente não flutuasse.
A água era doce, usada apenas para beber e preparar alimentos. Agua da chuva.
Enchia-se os potes de barro e filtros. Sensação boa de pegar o copo com asa e
ouvir o tibungado no fundo do pote, como já se referiu Luiz Gonzaga. Não me
lembro de ter que ferver agua para bebe-la, tampouco, não me lembro de ninguém
doente. Penso que fosse uma simbiose de interesses entre os “bichos” que
abrigavam o tanque e minha flora intestinal. Na verdade, beber daquela água era
medicinal. Discutia com meus primos e primas qual a profundidade do tanque, e
cada um inventava para si uma medida e uma mentira sobre quem já caiu e quem
quase se afogou, algumas eram verdade, mas minhas lembranças me traem agora. À
noite sentava-se em frente à casa para contar causos e lembrar dos que se foram,
não sabíamos das dores da perda e nossos pais de certa forma também não. As
crianças, que éramos nos, ouvíamos atentos e curiosos, em meio as brincadeiras
no chão de terra batida, mas polidamente limpo com vassouras tiradas dos
quintais e adjacências. Aquilo não era um terreiro, era um parque de diversões.
Bons tempos em que eu, juntamente com os primos fantasiávamos casos de lobisomens
e outros folclores. Lembro-me de vó sempre de avental com ovos à mão, serena
e senhora de si, sem se dar por isso, mas sabíamos todos. Vô Jove com sua roupa
surrada da roça que hoje me lembra tanto meu pai. Na labuta ordinária de todos
os dias...interessante como a simples imagem pode nos remeter a tantas
lembranças...bons tempos o da minha infância...tempo em que a consciência ainda
não havia me tornado covarde. Envelhecer é se adaptar a normalidade, que é uma
ilusão imbecil e estéril como dizia Oscar Wilde.
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