segunda-feira, 30 de abril de 2018


Casa de Vó Luiza

Ainda sinto o cheiro de vó e vô quando entro nessa casa. Ainda ouço o disco da Xuxa nesse quarto da frente que agora não é mais quarto.  Da para ouvir o silêncio da modorra das tardes quando traquinamente eu roubava os biscoitos de um pote de alumínio cinza. O medo da repreensão tornava a aventura mais excitante. Havia sempre um caldeirão de água a esquentar na chapa de metal de um fogão a lenha eternamente aceso. O alpendre outrora mais baixo e mais modesto abrigava os netos em natais mais festivos e risonhos. Com direito a irmão chorando por presente que pensava ser seu, mas que devia ser entregue ao seu amigo oculto, o que causava boas risadas em todos. Minha mãe vestindo-se de papai Noel e nós em nossa inocência tentávamos adivinhar quem era. Era curioso ver o telhado antigo da casa, telha grossa, das que não se faz mais. Um emaranhado de “flandes” retorcidos captava agua da chuva, eram as biqueiras. Esperava-se as primeiras tormentas para lavar o telhado por onde circulavam os gatos. Os canais aéreos convergiam para o tanque, no meio do alpendre. Em noites muito quentes dormia-se em cima dele, admirando as estrelas com uma fenda bem nítida na Via Láctea. Ou assim aquele cenário se apresentava para mim. Minha avó, mandava pegar agua no tanque num latão com uma corda amarrada ao meio de uma haste de madeira. Quando não estava tão cheio era preciso ter perícia para jogar o “balde” com a boca para baixo, para que ele simplesmente não flutuasse. A água era doce, usada apenas para beber e preparar alimentos. Agua da chuva. Enchia-se os potes de barro e filtros. Sensação boa de pegar o copo com asa e ouvir o tibungado no fundo do pote, como já se referiu Luiz Gonzaga. Não me lembro de ter que ferver agua para bebe-la, tampouco, não me lembro de ninguém doente. Penso que fosse uma simbiose de interesses entre os “bichos” que abrigavam o tanque e minha flora intestinal. Na verdade, beber daquela água era medicinal. Discutia com meus primos e primas qual a profundidade do tanque, e cada um inventava para si uma medida e uma mentira sobre quem já caiu e quem quase se afogou, algumas eram verdade, mas minhas lembranças me traem agora. À noite sentava-se em frente à casa para contar causos e lembrar dos que se foram, não sabíamos das dores da perda e nossos pais de certa forma também não. As crianças, que éramos nos, ouvíamos atentos e curiosos, em meio as brincadeiras no chão de terra batida, mas polidamente limpo com vassouras tiradas dos quintais e adjacências. Aquilo não era um terreiro, era um parque de diversões. Bons tempos em que eu, juntamente com os primos fantasiávamos casos de lobisomens e outros folclores. Lembro-me de vó sempre de avental com ovos  à mão, serena e senhora de si, sem se dar por isso, mas sabíamos todos. Vô Jove com sua roupa surrada da roça que hoje me lembra tanto meu pai. Na labuta ordinária de todos os dias...interessante como a simples imagem pode nos remeter a tantas lembranças...bons tempos o da minha infância...tempo em que a consciência ainda não havia me tornado covarde. Envelhecer é se adaptar a normalidade, que é uma ilusão imbecil e estéril como dizia Oscar Wilde.

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